Se a outrora princesa do povo foi capaz de dizer: “Eu pela minha filha mato”, não teremos o que é preciso, nós, os filhos predilectos de Maria, para cantar ao lucero do alba, se for o caso, que por nossa mãe estamos dispostos até a morrer? Por acaso será que já só temos horchata nas veias, e vão resultar mais machotes os que conseguiram que se lhes aprove a infame bênção?
Certamente, ao dizer o de se fazerem eunucos pelo Reino dos Céus, Jesus não se referia a esta pandilha de amorfos e indolentes soplagaitas em que se converteu o clero, incapaz já de dar a cara até pela sua Santíssima Mãe celestial.
Aquele que, durante toda a sua sacrossanta Paixão, não permitiu que ninguém lhe tocasse um cabelo à sua bendita Mãe, vai aguentar impassível vendo como agora é ninguneada pelos primeiros que deveríamos promovê-la e enaltecê-la ante todo o povo fiel?
Vamos ter a cara-de-pau —que já seria ter alguma— de explicar aos fiéis, na próxima solenidade da padroeira de Espanha, que ela já não é corredentora, nem medianeira, nem intercessora, e que estará muito bonita sobre o pedestal, mas haverá que aplicar-lhe o de que “vê-se, mas não se toca”? Porque já é tolice dirigir-se a ela até com esta jocosa oração: “Virgem Santa, Virgem Pura, faz que aprove esta disciplina”, ao que ela poderá responder com mais verdade do que nunca: “Pois estuda, cara-de-pau”, já que, como agora não pode mediar nem interceder, outra coisa que consolar —que o que não se consola é porque não quer— não vai poder fazer.
Temo que, como o lumbras do Tucho, que se las sabe todas —embora seja o bode expiatório com quem todos se metem, porque meter-se com ele sai de graça—, tenha saído sutilmente, por não dar pontos sem linha, mas sabendo que a chave, para cozer as rãs, é o fogo lento, dizendo que, em privado, se podem seguir aplicando esses apelativos a Maria, igual que Fiducia supplicans havia soltado a monumental estafa da diferença entre o doutrinal e o pastoral, quando isto é a simples divulgação do anterior. Agora mais de um orador sagrado aproveitará para, sem ter de dar a cara —mas com mais cara que costas—, passar-se, como quem não quer a coisa, ao âmbito público e poder continuar com o costume inveterado de enardecer a massa fiel com as soflamas e os fervorines de rigor. Mas acaso é de recibo que quem, para se evitar problemas —que bastantes problemas dá já a vida—, acate a conversão de Maria em rainha parlamentar do céu, por isso de que reina mas não governa, por não ter já faculdade para nada, depois engane às ovelhas tomándolas por borregos e fazendo-lhes crer que, no fundo, não passou nada e que, como sempre, tudo segue igual?
Como que não passou nada? Sejamos sérios, por favor, que um mínimo de rodagem já temos todos, e, se há algo que não cai precisamente na lotaria, é a ordenação. Por isso falar aqui de dissonância cognitiva é um insulto à inteligência, que em todos se há de dar por suposta, mais mesmo que a coragem aos militares.
Todos sabemos que os títulos mariológicos estão tão intimamente entrelaçados que vêm a ser como as fichas de dominó, no sentido de que, se cai uma, vão caindo a seguir todas as demais. Por isso, de não ser corredentora, Maria já não pode ser medianeira de nenhuma graça nem tampouco intercessora, porque o sentido da correção e da intercessão é fazer chegar a graça redentora que Cristo —quem assim é o único Redentor— ganhou. Essa é justo a diferença entre ser Redentor, e obter propriamente a graça redentora, e ser correentor, e então limitar-se a comunicá-la.
Se se perguntasse por que o mesmo que ganhou a graça correentora não é o que a comunica diretamente, responde-se que por isso a salvação não é imediata, como pensam os protestantes, mas que imediato só é o céu com a visão beatífica; e, enquanto tanto, Deus utiliza sempre uma mediação como prolongação da sua própria natureza humana assumida instrumentalmente, e essa prolongação se cumpre e expressa, de modo visível, através da Igreja, e de modo místico, através da comunhão dos santos, segundo a qual podemos influir nos demais e até no corpo inteiro da Igreja. Mas se isso é aplicável a todos, que, como correentores, mediadores da graça e intercessores, podemos canalizar para os demais a única graça redentora ganha por Cristo, resulta que o mesmo agora fica vetado para aquela que precisamente colaborou indispensavelmente na Encarnação de Cristo —sendo a Mãe de Deus— e muito estreitamente em toda a obra salvífica, como o Novo Testamento põe de manifesto especialmente na Cruz e em Pentecostes? Então, aquela que foi a porta aberta de par em par, e por onde veio o que é a fonte da graça, agora vai ser canal seco por onde já não flui nenhuma graça? Consequentemente, para quê pedir já a Maria, se ela não pode interceder por ninguém, quando o que cabalmente se espera da intercessão é alcançar a graça, que sempre é misericordiosa depois do pecado original? Evidentemente, haverá que suprimir a última parte da oração que todas as gerações de cristãos lhe dedicaram a Maria para cumprir a sua mesma profecia no Magnificat, porque, salvo novas ordens superiores, alabá-la ainda se pode, mas rogar-lhe já se tornou tão inútil como pregar a curas ou confessar a freiras.
A que contrassenso se chegou? E ninguém vai dignar-se a alzar a voz, para salvaguardar a honra da Mãe, a fé firme da Igreja e a devoção constante do povo fiel? Vai-se valorar mais manter a zona de conforto —porque lá fora faz muito frio— que arriscar o tipo por algo nesta vida?
Para a maioria, tudo se vai resumir, a meu entender, neste falso dilema: o da cobardia de acatar sem rechistar, e até autocensurando-se, para subir ou, ao menos, não descer; e o da hipocrisia de, atendo-se em cada momento ao mais conveniente, dar, esse dia, a cara do mais intrépido marianista ante a gente, e depois a do mais obsequioso lamelibrânquio ante os de cima. Pior ainda, desde logo, é o segundo caso, pois o que é a hipocrisia senão uma cobardia disfarçada da prudência mais oportunista? Por isso a hipocrisia é a multiplicação exponencial de um defeito que ainda se pretende dissimular como tal, e inclusive simular como virtude, e que se torna tanto mais perigoso quanto mais se afana por lograr o seu maquiavélico propósito.
A verdadeira alternativa, porém, não está aí, mas em ser franco e consequente, pois a verdade deve ser sempre irrenunciável para quem se estime discípulo daquele que se declarou a Verdade em pessoa. E qual é agora a verdade? Reconhecer, ante tudo e sem ambiguidades, o evidente: que, segundo o magistério anterior, Maria é, em certo sentido, correentora, e também medianeira de todas as graças e intercessora (Dz 734, 1940a e 1978a), e que, segundo o magistério de Leão —Mater populi fidelis, n. 22 e 67—, já não é nenhuma das três coisas. Portanto, sejamos coerentes e demos-nos conta de que o magistério —que é o uso da potestade docente papal, dirigida a toda a Igreja e assistida pelo Espírito Santo— não é simples questão de palavras, mas de fé; e assim relativizá-lo é minar o cimento mesmo da doutrina católica. Por isso há que crer na realidade do que as palavras magisteriais indicam. Mas, reconhecido o evidente —que o que está à vista não precisa de candil—, como se pode ser consequente com um magistério inconsequente por claramente contraditório?
Como faltar à devida obediência religiosa ao magistério ordinário (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 892) é matéria de pecado mortal —por atentar contra a fé— e estar só um grau abaixo do rejeição ao extraordinário, que já supõe excomunhão, não vejo outra saída lógica, para quem não queira adentrar-se em maiores e árduas profundidades sobre o magistério de Leão —pois livre-me Deus de aconselhar a ninguém que vá contra a própria consciência—, que abster-se, na já iminente solenidade, de todo desabafo verbal tão fácil como estéril e reconduzir toda perplexidade e desazão interiores para o seu verdadeiro cauce intraeclesial: a queixa formal ante o bispo. Pois são os sucessores dos apóstolos os que, tomando a peito a primordial obrigação de velar pelo depósito da fé, deveriam solicitar a Leão a pertinente clarificação doutrinal.
Desde logo, não faltará a mentalidade místicoide e alienada que apele exclusivamente à oração —que sempre é importante, mas não exclusiva—, pois já se diz que “a Deus rogando e com o malho dando”, e a oração que nem compromete nem se traduz em comportamentos se dilui no puro fideísmo da inoperância. Além disso, que oração cabe já, agora que precisamente foi descartada a principal destinatária, depois de Deus? Mas, à hora da verdade, haverá suficientes aguerridos guerrilheiros de Cristo Rei absolutista, aos que não se lhes vá, como aos balões, todo o ar pela boca, mas que estejam dispostos a significar-se por sua gloriosa Mãe ante as altas esferas e a mover-se, ainda a risco de não sair mais na foto dos guapos oficiais? Essa é a tímida dúvida que em breve dará passo à desconsolada certeza de que, ao final, não somos nem quatro gatos, e além disso nenhum quer que lhe ponham cascavel ou sambenito, que, para o caso, é o mesmo. Se não fôssemos tão gregários nem tão estamentalmente corporativistas, outro galo nos cantaria.
